Um golpe de classe em retrospectiva

20171110_Dia Nacional de Lutas e paralisação-66No Brasil de 1964 e no Chile de 1973 os golpes foram contra reformas substantivas que aqueles governos – apoiados pelas massas e depostos pela força – prometiam fazer. No Brasil de 2017, contrariando as leis da física, não houve nem massa e nem força.

Mas se faltou a física, não faltou a química. A investigação das pedaladas fiscais por parte do TCU e do MPF logo transformou-se no catalizador do consenso de direita : uma convergência de interesses de todos os matizes conservadores e reacionários : um espectro formidável que vai dos que pregam o fim da liberdade artística àqueles que advogam pela privatização da Petrobrás, passando por aqueles que desejam eliminar os entraves ao consumo da natureza pelo capital. A lista é longa…

Durante os anos 2002 e 2014, isto é, os três mandatos completos de Lula e Dilma, o PT pode governar tranquilamente porque com os lucros em alta acentuada os salários puderam aumentar em termos reais. Capitalistas e trabalhadores não tinham motivo para abandonar o barco. Todos os outros interesses se mantiveram à sombra. Mas o sentimento anti-PT e o pragmatismo dos empresários nunca deixaram de existir. Afloraram como cogumelos depois da chuva com a retração da economia brasileira, o agravamento das contas públicas e o catalista das pedaladas fiscais. Com o perjúrio das pedaladas, erigido a pecado capital pela mídia, não foi difícil mobilizar a frustração das massas de classe média com rendas de vários salários mínimos, predominantemente masculina, com formação superior, coisa que aliás prova que a universidade não ensina nem ética nem pensamento crítico.

Uma parte dessa classe média, assalariada ou autônoma, com rendimentos entre 20 e 40 salários mínimos é sujeita a alíquotas de imposto não muito distantes das alíquotas que recaem sobre as frações mais ricas da população. Essas camadas se sentem vítimas do Estado, sensação que apenas se exacerbou sob  governo de um trabalhador sem dedo. Para elas o PT havia posto em funcionamento um inchamento do Estado às suas custas. Essa é a classe social do Lava Jato eu Apoio, classe que permance entocada em suas casas mesmo diante de um governo podre até o porão da casa, fato que mostra que a corrupção foi apenas a racionalização do ódio cego que nutriam contra a permanência do PT no governo.

Em franco contraste com essa camada social, os dois polos da sociedade de classes, os capitalistas de um lado e os trabalhadores de outro se beneficiaram dos três primeiros mandatos do PT, até a chegada da crise. O pacto tácito entre trabalhadores e capitalistas, no entanto, não tinha uma contrapartida automática no Congresso. Aqui foram acionadas as empresas públicas em conluio com grandes empresas privadas nacionais como fonte da cooptação financeira das bancadas da coalizão governante. A história se conhece…

Com a instigação ao golpe por parte do PSDB ao pedir no dia 31 de outubro de 2014 uma auditoria da eleição, e com a ferida aberta pelas pedaladas fiscais, aquelas faixas de altos rendimentos rapidamente se mostraram dispostas à mobilizaçao de rua. A elas convergiram os grupos radicais de direita que ampliaram a propaganda, já munidos que estavam de uma formação ligada a  interesses internacionais americanos, a exemplo da criação do Movimento Brasil Livre como braço de intervenção política do Students for Liberty  (Amaral 2016, p.50). A mídia canina,  as associações empresariais e last but not least o fundamentalismo religioso zeloso dos seus lucros junto à massa dos miseráveis, fecharam o séquito.

O caráter do que viria a ser o governo Temer se manifestou logo : antes mesmo da votação do impeachment no dia 31 de agosto de 2016,  o Senado já havia aprovado mudança na regra de partilha do Pré-Sal, enquanto em orquestração perfeita, o novo diretor da Petrobrás já sugeria o fim da exclusividade da empresa na exploração do petróleo.

O programa do PMDB Uma Ponte para o Futuro, lançado em outubro de 2015 e, portanto, um ano antes do impeachment, já dava o foco do que viria a ser a atividade legislativa : uma desconstrução de tudo que pudesse beneficiar o povo e os interesses nacionais. E assim foi. Tudo ocorreu como previsto no figurino do programa neoliberal : entre outras barbáries legislativas passou a reforma trabalhista que já começa a fazer um estrago na distribuição de renda no Brasil.

Diante de um quadro social tão desigual como o brasileiro, os aumentos do salário mínimo e os aumentos salariais reais impulsionados pelo desemprego em baixa tiveram um impacto considerável sobre a distribuição de renda a partir de 2003. A participação dos salários na renda nacional havia atingido seu menor nível no final do século XX, tendo tomado uma tendência de alta sustentada durante o novo século, até os dias de hoje :

gráfico

Fonte : Reelaboração do autor a partir de Saramago 2016,

Grafico 2.1 Parcela dos salários na renda, p.23

O golpe neoliberal tem a vocação explícita de acabar com essa tendência de aumento da participação dos trabalhadores na renda. A parcela salarial vinha se reduzindo em todos os países do capitalismo desenvolvido: Estados Unidos, Europa assim como em países periféricos da Europa. No Brasil o toque de caixa do neoliberalismo e suas reformas chegaram com atraso, travados que foram, parcialmente, pelo pacto social representado pelos governos do PT num ambiente econômico favorável. Tolerado pela burguesia enquanto o crescimento dos mercados e a estabilidade política representavam lucros para ela, tudo mudou assim que a crise atingiu o Brasil.

A reforma trabalhista, com a revogação da primazia do legislado e a decorrente perda de proteção ao trabalhador que isso implica, já deu início a um período de redução da parcela salarial na renda. As demissões para recontratação de novos empregados a salários mais baixos já está ocorrendo. A rotatividade da força de trabalho não é uma novidade. Ela sempre foi utilizada como forma de rebaixar os salários. A diferença é que agora ela tem uma alavanca legal: os novos salários estão livres para serem reduzidos ao nível da ansiedade por emprego por parte daqueles que desesperadamente buscam uma renda: os mais de 12 milhões de desempregados à procura de trabalho.

A social-democracia da periferia, o PT, deveria estudar a experiência da social democracia européia para ver que nem todos os meios levam a resultados sustentáveis.

Referências
Saramago, Hugo Araujo (2016). Trajetória da parcela dos salários na renda no Brasil: 1990-2013. UFRJ Instituto de Economia, Programa de Pos-Graduação em Economia – PPGE, Dissertação de mestrado.

Amaral, Marisa. (2016) Jabuti não sobe em árvore : como o MBL se tornou líder nas manifestações  pelo impeachment, in Porque Gritamos Golpe : Para entender o impeachment e a crise no Brasil. São Paulo : Boitempo.


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