Terceirização e Antunes

shutterstock_249182575-e1551146685556

 

Ricardo Antunes forneceu recentemente uma entrevista ao Informativo no. 86 do ANDES no qual faz algumas reflexões sobre o problema da terceirização. As reflexões são pertinentes e necessárias neste momento no qual a terceirização está em curso de generalização total.

É preciso, porém, discuti-las de modo mais sistemático, o que provavelmente ele terá feito no seu livro sobre o assunto, recentemente publicado. Apresento a seguir algumas reflexões críticas sobre sua entrevista. Estas reflexões devem ser tomadas como o que são: apenas considerações sobre os mesmos fenômenos vistos, porém, desde um ponto de vista diferente.

Na página 14 Antunes afirma: “A empresa de terceirização aluga um plantel de trabalhadores para outras empresas que as contrata sob a forma de locação” (p.14).A empresa que terceiriza uma atividade não aluga os trabalhadores, ela compra uma mercadoria, que é um efeito útil, seja esse efeito útil a limpeza ou a segurança, por exemplo. Se ela alugasse os trabalhadores Antunes deveria explicar o que ela faz com os materiais que são utilizados, os meios de produção da atividade terceirizada: por exemplo, produtos de limpeza da atividade de limpeza; motocicletas e armas da atividade de guarda, e assim por diante. Os aluga também? Ademais, se assumíssemos que ela aluga tudo isso ela deveria gerir o processo de trabalho. Mas, o princípio da terceirização, além da redução de custos, é exatamente deixar a gestão do processo de trabalho para terceiros. De fato, não é ela quem gere o processo de trabalho, é a empresa de terceirização de serviços. Há uma dificuldade adicional: se se tratasse de aluguel, então a empresa de terceirização deveria ser considerada um caso especial de capital portador de juros, mais ou menos como deveríamos considerar capital portador de juros uma empresa que aluga máquinas, por exemplo. O valor-capital alugado seria o valor da máquina que deveria render juros. A particularidade é que além do juro a empresa de locação de máquinas receberia também um montante equivalente à depreciação do equipamento, aspecto que também deveria aparecer no caso do aluguel do serviço de limpeza já que teríamos a presença de equipamentos de limpeza do tipo “capital fixo” em relação aos quais se deveria ressarcir a depreciação. Mas nada disso corresponde ao caso em pauta.

Sobre o Uber ele diz que o “trabalhador que tem seu carro não é dono dos meios de produção, ele tem o instrumento de trabalho, há uma brutal diferença” (p.15). Mas onde está a brutal diferença? A diferença está no fato de que o motorista do Uber tem um meio de consumo, seu carro, que ele utiliza como meio de produção quando está em atividade, exatamente como uma família qualquer utiliza seu fogão quando alterna entre produção de valores de uso para o consumo (refeições) ou valores de uso para a venda: o fogão é em qualquer das duas alternativas sempre um instrumento de trabalho. Quando produz para o consumo doméstico esse instrumento de trabalho é igualmente um meio de consumo. Quando produz biscoitos ou cocadas para venda o fogão é utilizado não como um meio de consumo, mas como meio de produção (instrumento de trabalho), suporte produtivo de uma operação de circulação simples de mercadorias: vender para comprar.
O motorista do Uber não cozinha para vender, mas faz algo análogo. A mercadoria que ele vende se produz simultaneamente ao seu consumo: é o transporte. Mas eles não vendem diretamente para o cliente, vendem o transporte para a plataforma do Uber que os mobilizou. A plataforma vende o transporte para o cliente. O Uber compra e vende transporte: trata-se de capital de comércio de mercadorias. No que tange à atividade do motorista ela é também uma atividade da circulação simples de mercadorias: M – D – M, vender para comprar enquanto que a atividade capitalista do Uber é uma atividade própria do capital comercial. O espetacular aqui é que a origem do lucro não é uma parcela da mais valia como no caso do capital comercial analisado por Marx. No entanto, o motorista funciona face ao Uber como um capital industrial pulverizado numa miríade de elementos dispersos que vendem para o comércio: produzem um valor do qual não podem se apropriar por inteiro, da mesma forma que o capital industrial tem que renunciar a uma parcela da mais valia para permitir ao capital comercial a realização do lucro comercial. A fase M – D da circulação simples de mercadorias sofre uma partição:

Nessa partição a parte que é representada por d fica com a plataforma e a outra parte que é representada por D-d fica com o motorista.
A mesma análise pode ser aplicada ao caso do crowdsourcing delivery onde a força de trabalhoque são ciclistas e motociclistas – não vendem a força de trabalho,mas um produto: o transporte, para o qual ela utiliza um meio de consumo que se transforma em meio de produção nos momentos de sua conversão em meio de produção durante a atividade de transporte. A plataforma compra o transporte e o vende ao consumidor na forma de uma entrega de produto, uma refeição por exemplo.
Por fim, a noção de que estaríamos “regredindo a formas de escravidão do trabalho” (p.15) precisa ser discutida seriamente. É verdade que no dia a dia em que nos defrontamos com a terceirização de atividades de limpeza na universidade, por exemplo, não há como não pensar nesses termos. No entanto, do ponto de vista da análise trata-se apenas de uma figura de linguagem. Como se sabe muito bem o escravo é comprado como meio de produção e utilizado como meio subjetivo do processo de trabalho, duplo aspecto que cria um conflito entre o custo de sua reposição e o custo de sua manutenção, como é evidente na história da oscilação do preço das “peças”: o barateamento do preço dos escravos impunha imediatamente uma piora nas condições de sua utilização, pois se tornava mais lucrativo esgotar sua vida útil mais rapidamente, mais ou menos como ocorre com a depreciação moral dos equipamentos tornados obsoletos pela celeridade da inovação, fato que provoca uma intensificação do seu uso. As trabalhadoras terceirizadas da limpeza aqui na universidade, para dar um exemplo mais próximo, não são compradas e vendidas. O que é comprado e vendido é o efeito útil, a limpeza. Que as condições de trabalho e salário sejam aviltantes não há dúvida. Mas isso não nos deve levar a conclusões confusas, pois desse modo jamais conseguiremos conceber a natureza do lucro dessas empresas. E de onde vem o seu lucro? Essas empresas, como a OBENK, atualmente responsável pela limpeza na UFPR, são formas do capital industrial sendo o “chão de fábrica” os vários locais de trabalho onde seus serviços são contratados. É nesses locais que se dá o processo de produção nos quais os empregados adicionam mais valor do que custam em salários.
Francisco Paulo Cipolla


BOLETIM ELETRÔNICO


REDES SOCIAIS