Reforma de Córdoba: um marco para o projeto de universidade latino-americana

Da juventude argentina de Córdoba aos homens livres da América. Assim começava o Manifesto de Córdoba, escrito em junho de 1918 na maior cidade do interior da Argentina, no momento em que estudantes ocupavam a Universidade de Córdoba e depunham o reitor conservador recentemente eleito, exigindo uma reforma na educação do continente. Era a explosão de um movimento que ficou conhecido como a Reforma de Córdoba, e abalou as estruturas de universidades em toda a América Latina.

Em 2018, no centenário da Reforma, o ANDES-SN realiza, na cidade de Salvador (BA) seu 37º Congresso, com o tema “Em defesa da educação pública e dos direitos da classe trabalhadora. 100 anos da Reforma Universitária de Córdoba”. Não à toa, a Reforma é lembrada no Brasil, cem anos depois. Foi ela que gerou as bases das universidades que existem hoje, deixando um legado marcante na educação do continente.

O início

A Argentina passava por importantes transformações no início do século XX. Jovens da recentemente formada classe média urbana começavam a acessar a universidade. Em 1916, Hipólito Yrigoyen foi eleito presidente por sufrágio universal masculino pela primeira vez na história do país. As estruturas da educação, entretanto, eram conflitantes com as mudanças do novo século.

A Universidade de Córdoba era dirigida pela oligarquia rural católica e o recém-constituído movimento estudantil da classe média urbana exigia mudanças na estrutura da educação. Defendia que estudantes pudessem participar da gestão da universidade, que os docentes tivessem livre direito de cátedra, que a universidade cumprisse um papel social para fora de seus muros com a extensão. Cobrava também que houvesse eleições para os cargos de gestão e liberdade para assistir as aulas e, ainda, que a universidade tivesse autonomia de gestão, entre outras pautas.

Respondendo a algumas das reivindicações estudantis, o presidente Yrigoyen nomeou o Procurador Geral da Nação como interventor na universidade, e esse iniciou uma mudança no estatuto da universidade e chamou eleições – mas apenas entre os docentes. Em 15 de junho, com o candidato jesuíta, Antonio Nores, eleito reitor os estudantes começaram a revolta. A administração da universidade foi ocupada, e o Manifesto de Córdoba escrito e divulgado pelo país. 

Após muita pressão, Nores renunciou, e o presidente nomeou um novo interventor, dessa vez José Salinas, ministro da justiça. Em 12 de outubro, Yrigoyen publicou, finalmente, um decreto que respondia às ânsias do movimento estudantil cordobês e democratizava também as demais universidades do país (Buenos Aires, Tucumán e La Plata). O movimento “reformista” se espalhou também pelos outros países do continente, com forte presença no Peru. Até hoje, quase cem anos após a Reforma, suas bandeiras são base de movimentos que defendem a universidade pública na América Latina.

Legado

Luis Eduardo Acosta, 1º vice-presidente do ANDES-SN, ressalta que a escolha do tema para o Congresso do Sindicato Nacional demonstra a importância da Reforma de Córdoba para a educação do continente. “Celebrar o aniversário da Reforma de Córdoba é importante porque desse movimento surge um projeto que podemos chamar de universidade latino-americana, uma universidade que tenta responder os problemas dos trabalhadores e da sociedade latino-americana. Foi um movimento anti-oligárquico, com protagonismo estudantil, que se confrontou com a estrutura arcaica da universidade – que estava dominada pela hierarquia da Igreja”, diz.

Segundo o docente, os protestos e questionamentos das autoridades universitárias foram bem sucedidos, e inauguraram elementos da universidade latino-americana. Entre esses elementos estão a defesa da autonomia universitária, a participação estudantil na gestão da universidade, a liberdade de cátedra e a extensão universitária. “São os estudantes que colocam a necessidade da universidade não ficar fechada, encastelada, mas que se abra para a sociedade. Esses seriam os traços da nossa universidade, a universidade latino-americana”, comenta sobre as principais bandeiras dos “reformistas” cordobeses.

Acosta lembra que o legado da Reforma de 1918 foi continental, e que inclusive as universidades brasileiras trazem em sua organização algumas das mudanças que começaram em Córdoba. “O impacto entre a juventude do continente naquela época foi muito grande, e várias universidades foram se modificando por conta disso. Era o início do Século XX, havia a emergência das classes médias, o impacto da Revolução Russa. A Reforma radicaliza a demanda, diz que a universidade deve estar a serviço dos trabalhadores e não ser um espaço da oligarquia”, afirma o 1º vice-presidente do ANDES-SN.

Luis Eduardo comenta, também, que muitas das lutas de 1918 seguem atuais nas universidades de 2017. “A pauta da autonomia segue vigente. No Brasil, até hoje, não podemos escolher reitor de maneira direta, apenas por consulta que é encaminhada para o MEC [Ministério da Educação] decidir. A pauta da gestão é vigente com a participação dos estudantes e servidores. Hoje, ela existe, mas de maneira bastante limitada, já que nós, docentes, temos peso muito maior nessa gestão. A luta anti-oligárquica também segue atual. Hoje, a nossa oligarquia é financeira e não mais a velha oligarquia agrária. A oligarquia quer privatizar e mercantilizar a educação, ainda que talvez seja filha daquela oligarquia do século passado. A liberdade de cátedra está ameaçada atualmente, com todo esse movimento conservador da Escola Sem Partido, que quer policiar o pensamento livre, e os estudantes já, naquela época, em 1918, reivindicavam o direito a ouvir vozes diferentes”, diz.

O diretor do ANDES-SN também pontua que a extensão universitária é uma pauta contemporânea, ainda que haja compreensão diferente sobre a questão. De acordo com ele, naquela época, pensavam que a universidade deveria ir até a sociedade “iluminá-la” de conhecimento. Hoje, a visão é de um diálogo de saberes com as camadas populares, de que a universidade deve realizar uma troca de saberes. “É a defesa de uma universidade que não seja uma Torre de Marfim, que saiba que têm responsabilidades sociais”, completa o docente.

Luis Eduardo Acosta conclui ressaltando que o pioneirismo dos estudantes de Córdoba serve como legado para as lutas em defesa da educação pública na atualidade. “O projeto embrionário de Córdoba nos faz pensar, quase cem anos depois, na necessidade da universidade se abrir para os trabalhadores, para os povos originários, que tenha a cor do nosso povo, mais enegrecida e mais feminina, e que possibilite que a população possa entrar, estudar e se formar. Muito do que foi levantado naquela oportunidade, levando em consideração que um século se passou e que o capitalismo mudou, ainda é uma proposta a ser realizada nas universidades do Brasil e da América Latina”, afirma.

Matéria publicada originalmente no InformANDES de Novembro de 2017. Imagem de Arquivo Geral da Nação Argentina

Fonte: ANDES-SN

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