Do retorno às atividades pelos meios remotos ou a “nova normalidade” das universidades públicas

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Rodrigo Czajka (Professor do Departamento de Sociologia da UFPR)

Temos consciência que a pandemia da Covid-19 nos empurrou para uma situação jamais imaginada. Dentro ou fora dos muros da universidade todas e todos reconhecem a gravidade da situação; não somente pelo fato de nos defrontarmos com nossa incapacidade de enfrentamento do vírus, mas sobretudo por conta da atual conjuntura política que intensifica os danos da pandemia. Nem é necessário tecer detalhes da situação amplamente conhecida: em meio à disseminação do vírus pelo território nacional, seguimos, até o momento, sem Ministério da Saúde que conduza as políticas unificadas de combate ao vírus. Aliás, carecemos até mesmo de um chefe do Executivo que reconheça a importância do Estado numa situação extraordinária como a que vivemos hoje.

No caso das universidades públicas do país nota-se como o problema da pandemia deve ser pensado nas suas mais variadas dimensões, dos docentes, passando pelos alunos, técnicos e até a comunidade externa a qual está ligada. Uma decisão unilateral de retorno remoto às atividades sem a consideração de todos os setores que compõem a universidade é a caracterização de tudo que a universidade não deve ser. Entre as diretrizes definidoras da universidade pública está o seu comprometimento com a sociedade na produção de conhecimento e com a promoção de debates que articulem os diferentes setores e classes sociais que a constituem. Ela é expressão de um projeto político-social que se assenta no fortalecimento da cidadania, da democracia, da liberdade de pensamento e expressão.

Por outro lado, o isolamento físico e social tem nos impelido a uma retração que, via de regra, nos impede de reafirmar plenamente estes compromissos públicos. Os espaços físicos da universidade esvaziaram-se e nos recolhemos devido a uma situação extraordinária que solicita, por sua vez, soluções extraordinárias. O convívio presencial que sempre fez parte da cultura acadêmica neste momento está prejudicado, mas não impede que a universidade continue funcionando. Aliás, a quarentena não paralisou a universidade: na condição remota continuamos a produzir nossos relatórios, a realizar reuniões de departamento, a organizar levantamento sobre os impactos da pandemia na universidade, bem como não deixamos de publicar, de participar das bancas de pós-graduação, de promover encontros dos grupos de pesquisa e atividades de orientação.

As atividades presenciais, mais especificamente, as aulas deixaram de ocorrer nos ambientes fechados das salas devido ao risco da aglomeração. Os calendários das atividades presenciais foram temporariamente suspensos na universidade com a intenção de garantir a saúde das pessoas (docentes, discentes e técnicos), que continuam a espera do retorno da normalidade. E pelo que se nota, essa espera se prolongará por tempo indeterminado, sobretudo devido ao descaso com que o governo federal vem tratando o problema da pandemia no país. Aliás, já se cogita em diferentes debates uma universidade pós-pandemia, o desenho de uma remodelação da estrutura das universidades públicas partir daquilo que se convencionou denominar “nova normalidade”.

Essa discussão nos demanda muito cuidado e atenção aos seus termos. Não se trata de pressupor oposição entre aqueles que resistem e optam pela suspensão por tempo indeterminado das atividades no interior das universidade, aos que se empolgam com o emprego das tecnologias da informação na construção da “nova normalidade”. Há um conjunto de elementos complexos que se justapõem num cenário amplo e poroso, e que necessitam ser considerados.

O isolamento tem sido um recurso necessário e importante para que nos resguardemos dos riscos de contágio da Covid-19. Desde o início essa prática, com recomendação dos órgãos sanitários internacionais, tem dados excelentes resultados no controle da pandemia – muito embora essa condição tenha saído do radar do governo federal desde o momento em que descreditou os riscos da doença. Nem por isso a comunidade universitária desrespeitou a recomendações médicas e sanitárias; pelo contrário, quem pode e teve condições continuou e ainda continua em isolamento físico/social como a medida – única até o momento – mais eficaz de controle de contágio.

Entretanto, o isolamento físico não deve resultar em desmobilização social. Embora não tenhamos ainda dados conclusivos, sabemos que um dos principais efeitos do isolamento sobre os indivíduos tem sido de ordem emocional. Dada a ausência de qualquer previsibilidade institucional e instabilidade emocional, temos compreendido o isolamento social como recurso de autodefesa possível num cenário que foge ao nosso controle. Entretanto, esse recurso do isolamento, por si só, pode se revelar numa condição também perversa: na medida em que nos resguardamos e nos isentamos de tomar qualquer iniciativa na esfera institucional, ainda que por meios remotos, aqueles poderes decisórios que extensivamente empregam ferramentas remotas, se encarregarão de tomar as decisões unilateralmente. Noutras palavras: um dos riscos em aguardar o retorno da “velha normalidade” é a incerteza sobre seu retorno efetivo e, durante essa espera, decisões verticalizadas sejam implementadas com intenção única de questionar o isolamento e, assim, naturalizar o uso das ferramentas tecnológicas de ensino-aprendizagem à revelia de toda comunidade universitária. É necessário, pois, tomar parte no debate, apresentar propostas e não deixar que o isolamento físico transmute-se em isolamento social, impedindo a representação dos diferentes setores no processo de construção das atividades remotas na universidade pública.

Entretanto, há outro lado da questão. Tomar parte no debate sobre os uso das ferramentas digitais no trabalho remoto não implica em aceitação incondicional das tecnologias de ensino ou de EaD. Há inúmeros fatores que nos permitem calibrar o debate e propor alguns encaminhamentos práticos sem que assumamos uma adequação apressada e improvisada do sistema de ensino em meio a uma pandemia:

  1. O ensino remoto não deve se constituir num fim em si mesmo, mas um instrumento por meio do qual nos permita abrir uma discussão sobre suas viabilidades práticas. Nesse sentido, com a suspensão do calendário acadêmico a construção de calendário extraordinário (como é o caso da UFPR) a universidade, por meio de seus departamentos e coordenação de cursos, possa oferecer atividades formativas ou disciplinas optativas num sistema de adesão de professores e alunos. Que essas atividades possam servir de laboratório para pensarmos as metodologias de ensino remoto, os problemas inerentes a esse tipo de interação entre professor-aluno. Não custa lembrar que há muito realizamos cursos online, atividades de formação política e até curso de idiomas em plataformas virtuais. Por que a universidade não pode se apropriar desses mecanismos no fortalecimento de sua solidariedade que lhe é intrínseca e propor suas ferramentas do ensino remoto, em vez de deixar isso sob a responsabilidade da iniciativa privada?
  2. Que os colegiados de curso possam acompanhar as atividades desenvolvidas a fim de produzir um relatório propositivo. Ou seja, que os colegiados assegurem uma relação mais simétrica entre professor-aluno no âmbito das ferramentas virtuais acompanhando o progresso dos alunos, mas sobretudo observar a relação de docentes com a ferramenta remota de ensino na interação com seus alunos. Fazer das atividades eventualmente ofertadas um espaço de reaglutinação de alunos, professores e técnicos, com intuito de construir conjuntamente uma outra relação de ensino/aprendizagem e não aceitar que as plataformas de ensino remoto e as corporações de tecnologia se responsabilizem unicamente por isso.
  3. Para tanto, é necessário a universidade iniciar uma discussão sobre a construção ou fortalecimento de seus parques tecnológicos. Um dos grandes problemas que surgem quando se refere à apropriação das tecnologias para o uso no ensino remoto é estarmos restritos às plataformas comerciais de ensino virtual como Moodle, Google Classroom ou Microsoft Teams. É necessário que profissionais da engenharia da computação, da educação, das ciências sociais, da psicologia, entre outras áreas formem comitês de desenvolvimento de ferramentas tecnológicas que atendam às demandas e à especificidade de cada curso dentro da universidade. Apropriar-se das tecnologias implica em tornar-se desenvolvedor de plataformas, softwares e aplicativos para que atendam às necessidades de seus alunos, pesquisadores, professores e técnicos. É preciso compreender que as plataformas comerciais não estão preocupadas com tais especificidades, pois o que lhes garante confiabilidade é a circulação da mercadoria. E por termos absoluta ciência que educação não é mercadoria, também sabemos que alunos não devem ser tratados como usuários ou clientes das plataformas comerciais.
  4. Por ser o lugar por excelência do debate, do estudo, da pesquisa, é necessário que a universidade assuma a responsabilidade de criar e gerir estas ferramentas a partir das condições técnicas disponíveis. Antes da universidade aderir de forma entusiasmada às tecnologias da (in)formação e da comunicação é necessário que a comunidade acadêmica se debruce sobre seus alcances, mas sobretudo às suas limitações. É necessário que grandes áreas como tecnológicas, médicas e humanas reaglutinem-se para pensar os usos coletivos de uma tecnologia, que mal empregada individualiza os seres, além de estimular a quebra da isonomia no interior do espaço democrática que é a universidade pública. O processo ensino-aprendizagem não deve ficar refém de pacote de dados que se adquire por aplicativos de celular.
  5. Que e a atividade remota não se configure numa implementação apressada da estrutura de Ensino à Distância (EaD), modelo de ensino disseminado sobretudo entre as instituições privadas e implica numa relação específica, em que o treinamento substitui o aprendizado. Treinamento que visa, via de regra, unicamente o cumprimento de metas e obtenção de resultados, reproduzindo assim a lógica dos sistema organizacionais privados. A educação pública não pode ser concebida como treinamento, mas um processo social em que o aprendizado seja construído social e criticamente. Por isso, é premente debater os usos das ferramentas remotas em comparação ao EaD e como a ausência de um debate sobre essas ferramentas pode configurar na precarização do ensino, bem como do trabalho desenvolvido dentro da universidade por professores e técnicos. E como já frisado anteriormente: que os usos dessas ferramentas possam ser discutidos pela comunidade acadêmica, oferecendo aos trabalhadores da universidade condições de gerenciar as plataformas, que o treinamento dos servidores não se limite não a empregar as produtos comerciais já existentes.
  6. Nesse sentido, a participação ativa das entidades representativas de estudantes, professores, técnicos-servidores e sindicatos é de extrema importância no sentido de ampliar o debate sobre o uso das ferramentas remotas de ensino. Softwares, aplicativos e sistemas operacionais não constituem mero aparato técnico que desponta como solução funcional ao problema do isolamento social. Seu uso deliberado e particularizado pode conduzir a flexibilização e precarização das relações de trabalho num contexto neoliberal.
  7. Disso depreende que nossa desobrigação ou inércia nesse processo complexo pode levar a desdobramentos ainda piores que o quadro que ora se coloca a nós. Não aderir a qualquer tipo de atividade formativa ou aderir completamente ao ensino remoto sem ressalvas, parece refletir os dois lados de uma mesma orientação política: aquela que opta pelo isenção, enquanto os acontecimentos desenham no horizonte algum tipo de ruptura.
  8. Para tanto é necessário pensar em planos de curto, médio e longo prazos. Que se faculte à comunidade universitária, a partir de sua vasta heterogeneidade, organizar diferentes e concomitantes planos de enfretamento da pandemia, mas também de políticas de apoio a estudantes, docentes e técnicos; de abrir discussões e colocar em contato diferentes perspectivas sobre os rumos da universidade pública a partir desse momento excepcional. Planos que contemplem o acolhimento das pessoas, que facultativamente ofereçam atividades formativas durante o período de isolamento físico, quem reflitam sobre a universidade num contexto de uso massificado de tecnologias de comunicação sem qualquer protagonismo nesse processo. Iniciativas que devem ser planejadas em concomitância e não como fases condicionadas.
  9. Por fim, se todo este debate resultar na nulidade das experiências que ora nos são demandadas, temos a opção de retroceder e repensar nossos propósitos. O ensino remoto, por ser uma proposta que tem balizado o denominado “período especial” na UFPR, não é uma discussão aplicada para além da pandemia, mas no seu decurso. Há muito temos criticado inércia da sociedade em relação às transformações e rupturas das quais somos vítimas. Contudo, não assumir qualquer responsabilidade nesse momento é perder a capacidade de se tornar sujeito histórico desse processo. Uma transformação que só será construída a nossa favor se tomamos suas técnicas, estratégias e soluções como sendo nossas, apropriando-se dela criticamente.


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