Congresso anti-indígena: 33 propostas no Congresso ameaçam direitos indígenas

O resultado das eleições de 2014 anteviu uma guinada ao retrocesso. Parlamentares conservadores se consolidaram como maioria da Câmara Legislativa, de acordo com pesquisa do Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar (Diap). Instalou-se no Congresso brasileiro um projeto a ser gerido por militares, fundamentalistas religiosos e ruralistas. É a legislatura mais conservadora desde 1964. A constatação, quando analisada a partir dos direitos dos povos indígenas, corresponde à dura realidade enfrentada pelas populações tradicionais. 

Levantamento realizado pelo Conselho Indigenista Missionário (Cimi) identificou que há, hoje, 33 proposições anti-indígenas em tramitação no Congresso e no Senado. Somadas às propostas apensadas por tratarem de temas semelhantes, ultrapassam uma centena. Das 33 proposições anti-indígena apuradas, 17 buscam a alteração nos processos de demarcações de Terras Indígenas – oito sustam portarias declaratórias; seis transferem ao Congresso Nacional a competência de aprovar e gerir as demarcações das terras; as outras três correspondem a autorizar arrendamento em TI, impedir a desapropriação para demarcações de TI e estabelecer indenização para invasores que ocuparam TI após 2013.

Desde 2015, 18 proposições legislativas buscam aprovar leis  com a finalidade de retroceder direitos constituídos em 1988, na Constituição Federal. Hoje, entre as principais temáticas abarcadas pelas ementas estão a exploração de recursos naturais e as tentativas de redefinir os critérios para demarcação de Terras Indígenas, que têm como carro chefe a  Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 215/2000. 

As proposições são pautas de 21 deputados e senadores – 11 da atual legislatura. Dos atuantes, dez integram o grupo principal da bancada ruralista, a Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA), uma das maiores bancadas da Câmara dos Deputados, que se reúne semanalmente em uma mansão no Lago Sul, bairro nobre de Brasília (DF), para almoços com “cardápios” variados: questão indígena, os quilombolas, camponeses. 

Recentemente, o banquete contou com a presença – nada incomum – de Michel Temer, com quem os ruralistas negociaram o perdão da dívida de R$ 5,4 bilhões de proprietários de terras com a previdência rural. Para salvar-se das denúncias de corrupção e garantir sua permanência no governo, Temer foi generoso: autorizou o pagamento de dívidas rurais até 2032, com redução de 100% dos juros e de 25% das multas. O abono resultou que dos 263 votos pelo arquivamento da denúncia da Procuradoria-Geral da República contra o presidente, 129 foram dados por deputados da FPA. 

No levantamento realizado pelo Cimi, foram mapeadas as proposições, suas temáticas, ementas e a situação atual que se encontram. “A construção, divulgação e atualização deste instrumental de monitoramento das movimentações de proposições legislativas que atacam os direitos fundiários dos povos indígenas é mais um serviço do Cimi à causa indígena no Brasil e irá facilitar a importante tarefa de repasse dessas informações aos povos, suas lideranças, organizações e comunidades”, comenta o secretário-executivo do Cimi, Cleber Buzatto. 

“Avaliamos que, com as informações atualizadas, as lideranças indígenas terão melhores condições de análise e qualificarão a incidência junto a parlamentares, partidos políticos e outras instâncias que têm poder de intervenção na tramitação destas proposições a fim de que a bancada ruralista não tenha êxito na aprovação das mesmas”. 

A ofensiva do Poder Legislativo contra os povos indígenas é composta por 16 Projetos de Decreto Legislativo da Câmara (PDC), nove Projetos de Lei (PL), dois Projetos de Lei Complementar (PLP) e seis Propostas de Emenda à Constituição (PEC). Na listagem está o Requerimento de Instituição de CPI (RCP 26/2016), de autoria do deputado ruralista Nilson Leitão (PSDB/MT),  que originou a Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) para investigar a Fundação Nacional do Índio (Funai) e o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra).  

“Descomprometidos com a verdade, os ruralistas tentam criminalizar, por meio de indiciamentos, mais de uma centena de lideranças indígenas, indigenistas, religiosos e cientistas sociais que, cumprindo os preceitos Constitucionais nas suas respectivas esferas de trabalho, defendem os direitos indígenas no Brasil. O relatório originalmente apresentado pelos ruralistas incluía, ainda, a proposição de indiciamento de Procuradores da República, removidos para a lista de encaminhamentos”, afirmou nota do Cimi após aprovação do relatório da CPI, ocorrido no dia 17 de maio. 

:: Veja aqui as proposições legislativas anti-indígenas.

Quanto custa o retrocesso? 

No jogo de retrocessos e manutenção de privilégios, a FPA, com 207 deputados, une-se contra as populações indígenas com as bancadas da mineração (23 deputados), da bala (35 deputados), a evangélica (197 deputados), a empresarial (208 deputados) e das empreiteiras e construtoras (226 deputados). O levantamento mapeou os principais financiadores dos deputados e senadores propositores por intermédio da Consulta aos Doadores e Fornecedores de Campanha de Candidatos do Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Nas prestações referentes às eleições de 2014, incluem-se os doadores também para os fundos partidários (diretórios Nacional e Estadual). 

Fabricantes e comercializantes de insumos agrícolas, além das fazendas, produtores e compradores de bovinos, são os principais investidores que sustentam as campanhas dos deputados anti-indígenas.  Dos 22 políticos proponentes dos projetos de leis mapeados, e financiados por 31 empresas do setor que aplicaram em campanhas eleitorais valores acima de 50 cinquenta mil reais, 14  fortaleceram seus caixas com recursos oriundos dos ramos de insumos e maquinários agrícolas; dez parlamentares receberam aportes de empreiteiras e construtoras. Fabricantes de arma de fogo, indústrias açucareira, de combustível e tabagista compõem a lista de investidores. 

A família do atual ministro do Agricultura, Blairo Maggi, destaca-se entre a prole que mais investe nos membros da bancada ruralista. O colosso do agronegócio, que teve a casa vasculhada no dia 14 de setembro em mandato judicial acusado de obstrução à Justiça e formação de organização criminosa, direcionou R$ 1,518 milhões para três deputados:  Adilton Sachett (PSB/MT), Alceu Moreira (PMDB/RS) e Nilson Leitão (PSDB/MT). Ainda, R$ 250 mil foram destinados a Sachett por Itamar Locks, atual chefe executivo da divisão agrícola do grupo Maggi. O império da Família Maggi instaurou-se como um dos maiores produtores de soja do mundo. Segundo levantamento do Greenpeace, é responsável por pelo menos metade da devastação ambiental brasileira entre os anos de 2003 e 2004. 

Para o caixa de campanha de Félix Mendonça (DEM/BA), deputado responsável pelo PL 5993/2009, que estabelece barreiras  para a demarcação e homologação de terras indígenas, Morro Verde Participações doou R$ 170 miml. A empresa de criação de bovinos consta na lista de empregadores autuados por caracterização de trabalho análogo à escravidão , divulgada pela Repórter Brasil e disponibilizada pelo Ministério do Trabalho e Emprego.  Em janeiro de 2014, uma operação resgatou 23 trabalhadores da Fazenda Graciosa, em Xinguara (PA). A propriedade estava sob responsabilidade da Morro Verde Participações, que conseguiu uma liminar na Justiça para que o nome da empresa não constasse na divulgação da lista suja como empregadora que viola os direitos trabalhistas. 

As indústrias JBS e BRF, companhias de alimentos processados, somam R$ 2,148 milhões destinados a cinco dos políticos que atuam em proposições anti-indígenas. São eles: Adilton Sachetti (PSB/MT), Jerônimo Goergen (PSDB/RS), Luiz Carloz Heinze (PP/RS), Nicias Ribeiro (PMDB/PA) e Paulo Bauer (PSDB/SC). 

Aos deputados gaúchos Alceu Moreira (PMDB), Jerônimo Goergen (PSDB) e Luiz Carlos Heinze (PP), a multinacional Philip Morris, segunda maior empresa em produção de tabaco no país, garantiu o valor de R$ 258 mil em doações às respectivas campanhas. 

Proposições contra demarcação

Das 33 proposições anti-indígena apuradas, 17 buscam a alteração nos processos de demarcações de Terras Indígenas – oito sustam portarias declaratórias; seis transferem ao Congresso Nacional a competência de aprovar e gerir as demarcações das terras; as outras três correspondem a autorizar arrendamento em de terras regularizadas, impedir a desapropriação para demarcações de territórios tradicionais e estabelecer indenização para invasores que ocuparam terras indígenas após 2013.  

Das oito direcionadas a suspender portarias declaratórias que estabelecem a ocupação tradicional de territórios reivindicados, cinco foram propostas por deputados gaúchos: Alceu Moreira (PMDB/RS), uma proposição, Jerônimo Goergen (PP/RS),  duas das proposições, e Luis Carlos Heinze (PP/RS), duas das proposições. 

Além das medidas parlamentares que acirram e legitimam violências contra povos indígenas, Heinze e Moreira foram flagrados incitando ações de ódio e racismo contra comunidades tradicionais. Na cidade de Vicente Dutra (RS), interior gaúcho com presença de indígenas Kaingangda TI Rio dos Índios, os parlamentares,  durante audiência pública promovida pela Comissão de Agricultura da Câmara dos Deputados, convocou a comunidade a “se fardar de guerreiros” contra indígenas e a montar milícias de “seguranças privados”. 

O deputado Jerônimo Goergen (PP/RS) apresentou em sua atuação parlamentar 29 Projetos de Decreto Legislativo (PDCs) contra possíveis políticas de reforma agrária e regularização de territórios quilombolas e terras indígenas.  Goergen recebeu R$ 850 mil da JBS e R$ 300 mil da BRF em sua campanha à Câmara Federal.

Investida PEC 215 

A Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 215/00 assombra os direitos indígenas há 17 anos. É a pauta guarda-chuva defendida pela bancada ruralista, por  abrigar outras 11 PECs. A proposição aprovada na Comissão Especial da Mesa Diretora da Câmara, antessala das matérias votadas em Plenário, no dia 27 de outubro de 2015 encontra-se pronta para ser apreciada pelos parlamentares. A matéria passará por votações na Câmara dos Deputados e terá que obter 308 votos favoráveis para ser aprovada e direcionada ao Senado.  

O texto aprovado na Comissão, um substitutivo de autoria do relator deputado Osmar Serraglio (PMDB-PR), da FPA e com campanha eleitoral financiada (R$ 200 mil) pela JBS, agrupa dezena de proposições anti-indígenas. Entre os pontos incorporados à PEC carro chefe dos ruralistas no Congresso, destaca-se a constitucionalização do Marco Temporal, a exploração indireta das terras, medidas que vedam a revisão de terra indígena já demarcada, além estabelecer que as demarcações de TI devam ocorrer por meio de projetos de leis a serem aprovadas pelo Congresso Nacional. Em suma, engloba as temáticas de todas as proposições mapeadas.

A inconstitucionalidade da proposta foi repudiada por instituições indígenas, indigenistas e da sociedade civil. A  6ª Câmara de Coordenação de Revisão da PGR, onde são tratados assuntos relativos a populações indígenas e comunidades tradicionais, emitiu uma nota técnica que acusa a proposta de violar o núcleo essencial de direitos fundamentais, como o direito dos índios às terras tradicionalmente ocupadas (art. 231, CF); direito à cultura (arts. 215, 216 e 231, caput, CF); direito concedido pelo poder constituinte (art. 5º, XXXVI, CF); e direito ao devido processo legal administrativo (art. 5º, LIV, CF). 

Em nota, o Conselho Permanente da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) caracterizou a PEC 215 como ameaça às “conquistas e direitos de populações mais vulneráveis no país”. A CNBB aponta a PEC 215 como um “golpe mortal aos direitos dos povos indígenas, atingindo também comunidades quilombolas”. 

Nossa História Não Começa em 1988

Apesar de não consolidada no STF, a tese inconstitucional do marco temporal é constante em projetos de lei ruralistas e, por influência sua, vem sendo aplicada em instrumentos do poder Executivo, à revelia da mais alta corte do país.  É o caso do Parecer da Advocacia-Geral da União 001-2017, assinado por Temer em agosto, que busca inviabilizar administrativamente a demarcação de terras indígenas.

No Congresso Federal, a tese também aparece no PL 1216/2015, de autoria do deputado gaúcho Covatti Filho. Em 2015, o seu pai Vilson Covatti, ex-deputado federal, foi citado como um dos investigados pelo STF por suposto envolvimento no esquema de corrupção da Petrobras. Covatti Filho foi financiado pela JBS no valor de R$ 200 mil. 

Surgida em 2009 no julgamento do caso Raposa Serra do Sol pelo Supremo Tribunal Federal, a tese passou a ser utilizada como bandeira ruralista para limitar as demarcações de terras indígenas àquelas sob posse física dos indígenas em 1988, ano da promulgação da Constituição Federal. A tese desconsidera as especificidades da ocupação indígena, legitimando expulsões e massacres ocorridos antes de 1988, e aparece em outras proposições, como o PL 490/2007. 

No dia 16 de agosto, durante o julgamento das Ações Civis Ordinárias (ACOs) 362 e 366, movidas pelo estado de Mato Grosso contra a União Federal e a Fundação Nacional do Índio (Funai), embora a tese não tenha direcionado o julgamento, os ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) elucidaram sobre, afirmando o direitos originários dos povos indígenas.

“Os ministros do Supremo, de modo majoritário, reafirmaram que o conceito de tradicionalidade dos povos indígenas tem a ver com o modo de ocupação das suas terras e tem fundamento na legislação brasileira muito anterior à Constituição Federal de 1988”, avaliou Cleber Buzatto, secretário executivo do Cimi.

A Constituição Federal reconhece aos povos indígenas, em seu artigo 231, “os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam”. O julgamento no STF envolveu, assim, a discussão sobre o que são essas terras tradicionais. Grupos de interesses políticos e econômicos, como os ruralistas, pretendem limitar este conceito com o marco temporal, um critério não previsto pela Constituição Federal.

Exploração de recurso naturais

Treze proposições tramitam no legislativo visando a exploração de recursos naturais em Terras Indígenas, Áreas e Parques de Conservação. Investidas que buscam flexibilizar os direitos ambientais  estão sendo constantemente negociadas pela bancada ruralista com Michel Temer, talvez a principal fiadora parlamentar do impeachment de Dilma Rousseff.  O presidente, portanto, intensificou a barganha entre governo e ruralistas para manter tamanho apoio político diante de graves  denúncias e pedidos de impeachment que recaem sob sua gestão iniciada após a deposição de Dilma Rousseff.

O viés desenvolvimentista, que deseja se aproveitar das terras indígenas para arrendamento e monocultura, é defendida pelo alto escalão do governo. Recentemente, Torquato Jardim, ministro da Justiça, afirmou à delegação de indígenas do Mato Grosso do Sul que desejava “atribuir valor” às terras tradicionais, para que demarcações de cumpram requisitos de “custo benefício” ao Estado brasileiro. Na semana passada, Grace Mendonça, ministra da Advocacia-Geral da União (AGU), repetiu o discurso para um grupo de indígenas vindo do Maranhão, Tocantins e Roraima. 

Entre as proposições está a PL 2395/2015, do Vicentinho Júnior (PSB/TO), que visa modificar a Lei no 6.001/73, que “dispõe sobre o Estatuto do Índio”, para levar a lógica do agronegócio para as terras indígenas. A PL, segundo a ementa, quer “permitir às comunidades indígenas praticar atividades agropecuárias e florestais em suas terras”. Soma-se ao projeto de lei a PL 1610/1996, de Romero Jucá (PMDB/RO) que propoe atividades mineradoras em território tradicional. 

Em audiência pública agendada para a próxima quarta-feira (18), o núcleo duro da bancada ruralista, através da Comissão de Agricultura, Pecuária, Abastecimento e Desenvolvimento Rural, debaterá iniciativas de atribuir o agronegócio em terra indígena. A investida dos ruralistas é para que as terras indígenas sejam utilizadas para monocultura, estabelecendo uma relação econômica de custo benefício com os territórios.

Em nota, a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB) repudiou o que chamou de  “truculenta decisão” da Frente Parlamentar Agropecuária – bancada ruralista – de realizar o encontro. “A Frente Parlamentar Agropecuária jamais irá desistir de seus propósitos de tomar conta das terras e territórios indígenas, seja para a expansão do agronegócio, da pecuária e exploração dos bens naturais, ou para a implantação de grandes empreendimentos, incluindo o extrativismo minerário industrial”, afirma a nota.

O requerimento 478/2017, que convoca a audiência pública, foi assinado por parlamentares declaradamente inimigos dos povos indígenas: Nilson Leitão, Valdir Colatto, Alceu Moreira e Tereza Cristina. 

Fonte: Brasil de Fato


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