A judicialização conservadora da política vigente no Brasil e a escalada da militarização

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Por Felipe Brito

O dia 17 de abril de 1996 foi um dia manchado de sangue na história (banhada a sangue) da formação social brasileira. Nesse dia aconteceu o massacre de 19 trabalhadores sem terra, conhecido como Massacre de Eldorado de Carajás. Vinte anos depois, o dia 17 de abril sediou um dos episódios mais deploráveis da história republicana do país. A votação dominical que aconteceu na Câmara de Deputados foi, decerto, um show de horrores, cujos preparativos e consecução ancoraram-se em uma teia de expectativas, conveniências e demandas vinculadas à elite empresarial (incluindo os imensos conglomerados empresariais midiáticos), aos numerosos políticos fisiológicos e a segmentos “ativistas” do Ministério Público, Poder Judiciário e Polícia Federal (um ativismo seletivo, a propósito, visto que pouco incidente sobre a afirmação de direitos e garantias fundamentais, em especial as de caráter socioeconômico).

A análise dessa teia de expectativas exige-nos uma atenção especial ao desempenho desses últimos segmentos citados – em especial, ao conduzido por meio da aliança orgânica com a grande mídia empresarial e oligopolizada, no bojo da Operação Lava Jato. Sem tal aliança seria improvável a maquinação do impeachment ter logrado êxito. Houve uma descarada mobilização de ferramentas jurídicas para incidir sobre a dinâmica político-institucional (inclusive, partidária), e, de maneira direta, frontal, ocorreu uma instrumentalização do direito para fins imediatamente político-partidários, com uso alargado de medidas de exceção. Tal ativismo, ao se assentar em bases e motivações conservadoras e produzir efeitos colaterais também conservadores, é perpassado pelo chamado lawfare, conforme conceituação desenvolvida pelo coronel estadunidense Charles Dunlap. Trata-se de um exercício de manipulação do sistema jurídico, visando a perseguição, desmoralização, proscrição de indesejáveis políticos, estabelecendo-se a “presunção de culpa”.

Importante resgatar, a título ilustrativo, movimentações jurídicas concentradas nos vinte primeiros dias de março de 2016. No dia 3 de março de 2016, foi alardeado pela grande mídia um vazamento seletivo na revista IstoÉ da delação do ex-senador Delcídio Amaral (mentirosa, em grande medida, a propósito). Um dia depois, aconteceu a condução coercitiva do ex-presidente Lula (revelando a verdadeira motivação do ocorrido no dia anterior). Uma atmosfera de comoção a favor do impeachment foi desencadeada, alavancando as grandes manifestações do dia 13 de março de 2016. No dia 18 de março de 2016, Gilmar Mendes suspende a nomeação de Lula como ministro da Casa Civil, atendendo a pedidos do PSDB e do PPS. Tal decisão, em caráter liminar, interferiu diretamente na resposta política que o governo Dilma entabulou para se defender das investidas voltadas a angariar votos a favor do impeachment. O julgamento dos mandados de segurança foi marcado para mais de um mês depois, no dia 20 de abril. No dia 20 de abril, o colunista global Merval Pereira, em um bem humorado diálogo com outro colunista e âncora da mesma empesa, Carlos Alberto Sardenberg, na rádio CBN, divertia-se com o parecer “longuíssimo” de Gilmar Mendes, habilitado a protelar o julgamento (posto que dia 21 de abril foi feriado nacional). Naquele contexto, é importante lembrar, cada dia de negociação era de suma importância. Chegando a data, porém, o julgamento foi adiado. Por que esses segmentos de “ativistas” do Ministério Público, Poder Judiciário e Polícia Federal jogaram lenha na fogueira do impeachment é algo que a decorrência histórica ainda precisa desvelar, com mais exatidão.

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A fratura constitucional de 2016, chancelada pela omissão (nada passiva) do Supremo Tribunal Federal, contou com figurino diferente do que acostumamos, na marra, presenciar na América Latina: tratou-se de um golpe sem tanque na rua (especificamente voltado a tal finalidade, visto que a administração armada da vida social no Rio de Janeiro, por exemplo, conta rotineiramente com tanques na rua, com focos direcionados exclusivamente às favelas). A roupagem é outra, mas o recurso a expedientes golpistas, consagrando encaminhamentos (autoritários) pelo alto, é comum na formação social brasileira. Entretanto, deve ser ressaltado que isso não significou a ausência de participação das Forças Armadas: a rigor, setores militares, como veremos mais a seguir, também integraram o consórcio golpista.

Com efeito, vale observar que a atuação da Lava-Jato suscitou ressonâncias geopolíticas e econômicas profundas, em um contexto de crise estrutural do capitalismo e de disputas acirradas no chamado mercado internacional de engenharia e de obras de infraestrutura pesada. Basicamente, há oito players globais em tal mercado: além do Brasil, EUA, China, Espanha, Alemanha, França, Itália e Coreia do Sul. No âmbito dessas disputas acirradas, nossos competidores não claudicam em recorrer, inclusive, aos seus serviços oficiais de espionagem. Um combate (supostamente irrestrito) à corrupção que ignora esses fatores (ou tem ciência, “até demais”, dos mesmos), e joga “água, bacia e bebê” para fora, precisa, no mínimo, ser problematizando. Não por uma defesa ufanista de empresa multinacional sediada no Brasil e de nossa suposta burguesia “produtiva”, “empreendedora”. Depois de duas décadas de ditadura empresarial-militar, passado o golpe (com novas roupagens) de 2016, a burguesia brasileira deu mostras inequívocas da indisponibilidade de atuar em benefício de um projeto nacional-desenvolvimentista (e que projeto seria esse, “nessa altura do campeonato”?). Muito suor do(a) trabalhador(a) brasileiro(a), além de enxurradas de fundo público foram canalizados para a edificação da expertise nacional no mercado internacional do serviço de engenharia. Ademais, é fato que, acomodados à condição de exportador de commodities para a China, é difícil conceber uma alavancagem para experiências alternativas à defesa ufanista dos players globais sediados no Brasil e, ato contínuo, de crítica à forma capitalista de produção.

Em um contexto capitalista global ainda marcado pelo petroleocentrismo, há um emaranhado de poderosos interesses, coetaneamente econômicos e geopolíticos, em jogo. Diante disso, são preocupantes os impactos gerados no mercado de trabalho da (vasta) cadeia produtiva vinculada ao petróleo e gás (que chegou a corresponder a cerca de 13% do Produto Interno Bruto do Brasil), bem como no próprio PIB, em geral. Cálculos de economistas e de consultorias, como a 4E Consultoria, indicam uma queda do PIB entre 2 e 2,5 pontos percentuais. Só na indústria naval, ramo muito dependente dos fluxos econômicos oriundos da cadeia de petróleo e gás, estimativas apontam para um impacto negativo de cerca de 53 mil postos de trabalho perdidos1. Importante destacar também o recente acordo judicial da Petrobrás com fundos abutres, cuja gênese remonta à ação jurídica de final de 2014, ajuizada a partir de delações premiadas de Alberto Youssef, Paulo Roberto Costa e Renato Duque. Nesse acordo, a empresa desembolsou 9,6 bilhões de reais, montante bem superior ao valor estimado em decorrência da corrupção.

Decerto, correlacionar exclusivamente o processo da Petrobras nos EUA com a Operação Lava Jato é incorrer em uma leitura maniqueísta. Mas, sem o advento da Lava Jato e a maneira pela qual a operação é conduzida, no que tange, especialmente, às relações com os EUA, esse rentável negócio que envolve fundos abutres e escritórios de advocacia não teria sido possível. A possibilidade de ser processada nos EUA remonta à abertura de ações da Petrobrás na Bolsa de Valores de Nova York, conduzida no bojo do Programa Nacional de Desestatização. Tal abertura decorreu dos influxos privatizantes da década de 90 que, a rigor, não foram plenamente revertidos pelos mandatos lulopetistas. Especialistas avaliam que a abertura de ações, do modo como foi feita, serviu como intermediação ou compensação à falta de condições políticas de levar a cabo a privatização global da empresa, em figurino clássico da época, como ocorreu com a Vale do Rio Doce, CSN e tantas outras. Com isso, mais de 80% das ações preferenciais (sem direito a voto) foram leiloadas na Bolsa de Valores de Nova York (e o restante na BOVESPA). E, aí, na medida em que lançou essas ações, precisou se circunscrever à legislação estadunidense. Especialistas apontam uma litigância de má-fé nessas negociatas (pouco disfarçadas), e o governo brasileiro manteve-se silente, mas não por um acaso, na medida em que prioriza um paradigma altamente financeirizado de empresa, concentrado na tarefa de venda da commodity petróleo para o mercado externo, desvinculada da “integração vertical” da cadeia produtiva (importante ferramenta para fomentar a perspectiva do desenvolvimento, cujos formatos ainda é um desafio histórico, em um contexto de crise estrutural e ocaso dos projetos nacional-desenvolvimentistas).

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“Por que, então, a Petrobrás aceitou o pagamento do valor monstruoso de quase 10 bilhões, quando ela vive afirmando  que o problema é financeiro? O governo justificou a entrada dos oligopólios internacionais no pré-sal pela incapacidade financeira da estatal. Aí temos que considerar que a ação coletiva por parte dos acionistas e investidores tornou-se um negócio, um big business. Facilmente, o escritório Pomerantz fica com 20% do valor. Trata-se de um verdadeiro esquema de extorsão… O acordo representa o maior valor já pago por uma empresa estrangeira. Faltou dizer que é o maior valor pago por uma estatal… Por que a direção da Petrobras cuidou do caso como uma empresa privada? O assunto deveria ser tratado pelo governo, é uma questão de soberania nacional. Não ocorreu, porém, nenhuma atuação por parte da Presidência ou do Ministério das Relações Exteriores”.2

Junto com um rolo compressor inaudito de direitos sociais e expropriação de fundos públicos, o golpe de 2016 vem promovendo uma verdadeira black friday de ativos públicos e riquezas naturais. E o petroleocentrismo provoca uma imensa cobiça às reservas de petróleo, gás e sua correlata cadeia produtiva (muito vasta, conforme já frisado). Além da venda da reserva de Carcará para a transnacional Standard Oil, sediada na Noruega, por um preço módico, leilões estão programados em 2018 para a venda de 21 áreas importantes nas bacias de Campos, Santos e Espírito Santo.

Florestan Fernandes Jr. propõe uma costura de episódios pouco ressaltados e analisados. Em janeiro de 2008, quatro laptops e dois HDs, direcionados ao armazenamento de informações sigilosas acerca da Bacia de Santos (decorrentes de 30 anos de pesquisas), foram roubados. Tal roubo aconteceu cerca de um ano depois da impactante descoberta de reservas estimadas em 80 bilhões de barris de petróleo na camada pré-sal. Em 2013, Edward Snowden revela que os EUA, além de terem espionando o Poder Executivo brasileiro, fizeram-no sistematicamente com a Petrobrás. Antes, em outubro de 2009, o WikiLeaks torna público um documento no qual figura o nome do juiz Sérgio Moro como participante de uma conferência organizada pelo Bridges Project – projeto vinculado ao Departamento de Estado norte-americano –, cujo mote anunciado era “consolidar o treinamento bilateral entre os EUA e o Brasil para a aplicação da lei”3. Nas conclusões listadas pelo evento “bilateral”, segundo o WikiLeaks, consta a “necessidade continuada de assegurar treinamento a juízes federais e estaduais no Brasil para enfrentar o financiamento ilícito de conduta criminosa”, “com a formação de forças-tarefa de treinamento”, que poderiam ocorrer em “São Paulo, Campo Grande ou Curitiba”4. Coordenadas como essas respaldam avaliações que captam confluências (indiretas ou, até mesmo, diretas) entre os interesses econômicos e geopolíticos norte-americano e a Lava Jato. Podemos arrolar como exemplo pensadores como Bandeira de Melo, Fábio Konder Comparato, Muniz Bandeira, Marilena Chaui, dentre outros (as).

Avaliamos ser prudente não se entregar aos “cantos das sereias” de “teorias da conspiração”. Do mesmo modo, é prudente lembrar que muitos episódios envolvendo os EUA (em princípio, absurdos – suscetíveis, portanto, de serem diminuídos como “teoria da conspiração”), revelaram-se como realmente existentes e verdadeiros – absurdos, mas verdadeiramente existentes. Pensando em exemplos, poderíamos citar o caso Irã-Contras5, dentre muitos outros. Fato é que, com ou sem “teoria da conspiração”, direta ou indiretamente, os entrelaçados interesses econômicos e geopolíticos norte-americanos estão sendo alimentados pelo conjunto de medidas pós-golpe 2016. Decerto, o lulopetismo não se caracterizou pelo enfrentamento “anti-imperialista” frontal, direto. Mas, medidas e posicionamentos, como o giro geopolítico para o Sul do planeta e para os BRICS; o esfriamento da Área de Livre-Comércio das Américas (ALCA); o regime de partilha para a produção do petróleo brasileiro e o fomento à chamada política de “conteúdo nacional”; a (supracitada) atuação no mercado internacional de engenharia; a compra dos caças suecos etc. colidiram com significativos interesses econômicos, empresariais e geopolíticos estadunidenses.

Elencando, ainda, ações do governo golpista em benefício direto a transnacionais do petróleo, especialmente as empresas vencedoras do leilão do pré-sal de outubro/2017, podemos citar a Medida Provisória 795/2017, que implementa um “pacotão” composto por isenções fiscais e diminuição de bases de cálculos, cujo montante de renúncia de receitas atingirá a casa de 1 trilhão de reais, em 25 anos. No mesmo compasso, o “pacotão” provocará o desmantelamento (da já fragilizada) política industrial de conteúdo local, na medida em que as desonerações incidem sobe produção de navios, plataformas e demais importações de mercadorias essenciais à cadeia produtiva petroleira. Vale citar, ainda, estudos de Consultoria Legislativa da Câmara de Deputados que indica uma queda na participação do Brasil em cada barril de petróleo (cuja expressão é o verdadeiro despencamento do quanto o país arrecada por produção do barril). Enquanto a China preserva participação de 74%; os EUA, de 67%; a Rússia, de 66%; o Reino Unido, de 63%, o Brasil passará de 59,7% para 40%, uma das mais diminutas do planeta6.

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Ademais, é importante destacarmos uma consideração de raiz. Que a corrupção deve ser insistentemente investigada e combatida, isso é inegável. Mas, em uma formação social manchada pelo extermínio (seletivo) de negros e favelados, que ostenta o terceiro lugar no ranking mundial do encarceramento (incluindo, aí, uma quantidade discrepante de presos provisórios), não podemos ser coniventes com o atropelo de garantias e direitos fundamentais, como o princípio do contraditório, da ampla defesa, da presunção de inocência, da reserva legal, do juiz natural e imparcial etc. A aposta de que a ampliação do arsenal punitivo-repressivo-vigilante do Estado promove a superação da seletividade é, no mínimo, ingênua.

O sistema punitivo do Estado (capitalista, por excelência) tem clientela cativa. É absolutamente factível uma posição que, ao mesmo tempo, repudie a expectativa de impunidade verbalizada pelo lema do Senador Romero Jucá – “estancar a sangria dessa porra” (referindo-se às investigações contra ele outros políticos) –, e não se deslumbre com as pretensões messiânicas de Moro, Dallagnol e companhia de combater a corrupção e o fisiologismo, mediante direito penal turbinado com medidas de exceção e (neo)liberalismo na cabeça.

Historicamente, é possível verificarmos que o agigantamento do sistema punitivo e a espetacularização da justiça não serviu para democratizar, de fato, a sociedade, revertendo suas mazelas estruturais. Pelo contrário, ampliou a criminalização da pobreza e das lutas sociais, contribuindo para a emergência de monstruosidades como o fascismo, nazismo e outros regimes ditatoriais. Autoritarismo, (novos e velhos) conservadorismos e crise econômica capitalista costumam andar juntos, conforme nos mostra a trágica história do capitalismo.

Com efeito, insuflados por veículos da grande mídia empresarial, setores da classe média, principalmente, estabeleceram uma relação apologética, impermeável a qualquer questionamento a uma operação que ultrapassou, e muito, a condição de uma operação jurídica. Os condutores da Lava-Jato atuam no registro de (única) reserva moral da sociedade brasileira, ungidos com a tarefa (redentora) de “limpá-la”. Essa perspectiva de fundo (e toda a apologética correlata) vitaminaram o sentimento de ojeriza à política, no qual um dos sintomas é a ascensão de uma figura tosca como Jair Bolsonaro. Para alcançarem tal meta “redentora”, seria “justificável”, além da participação nas maquinações que resultaram no impeachment, enxertar um rol de medidas de exceção, como, por exemplo, a adoção, como regra, da condução coercitiva; os linchamento midiáticos de investigados e réus (que invertem o “ônus da prova”), impulsionados por vazamentos seletivos (incluindo a antecipação de juízos condenatórios); a vulgarização da prisão provisória (com a expectativa de que o suplício inerente a essa condição ensejasse a proliferação de delações premiada que, no lugar de meios de provas, foram tratadas diretamente como provas).

Alguns juristas progressistas (dos poucos que existem) e estudiosos da matéria repertoriaram e analisaram essa propensão a operar por meio de medidas de exceção. Sinteticamente, as medidas de exceção podem ser tratadas como tecnologias de governança que acarretam em suspensão de direitos e garantias constitucionais em nome da defesa da ordem constitucional, provocando uma espécie de “legalização da inconstitucionalidade”. Além do efeito conservador, de fundo, de manutenção do estado de coisas, as ressonâncias dessa tecnologia de exercício do poder incidem, prioritariamente, sobre os segmentos mais vulneráveis da classe trabalhadora e sobre os que se organizam para lutar com esses segmentos. A democracia de mercado (re)criada após a ditadura empresarial-militar, no Brasil, é perpassada por focos cada vez mais disseminados e alargados de medidas de exceção, e isso tem relação direta com o fato de que tal regime democrático comportou a matança e o grande encarceramento (seletivos) de jovens negros, pauperizados e moradores de favela, além de ter desenvolvido obstruindo transformações estruturais da sociedade e canais de participação popular efetiva.

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Desde 2014, o noticiário é tomado, ostensivamente, por notícias da Operação Lava Jato. Mas, crianças negras, pauperizadas e moradoras de favelas continuam sofrendo com o banho de sangue (seletivo) que se alastra sobre as periferias urbanas brasileiras, bem como as “águas de março” continuam, em pleno século XXI, arrasando vidas daqueles que são vítimas da segregação urbana, obrigados a morar em áreas de risco. E a sociedade brasileira continua seu funcionamento empurrado por altas dosagens de automatismo. Qualquer análise com pretensões críticas do país precisa levar em consideração essas características relacionadas entre si: o número elevadíssimo de pessoas mortas por homicídio e a quantidade enorme de pessoas presas. E uma análise minimamente cuidadosa desses dados revela a marca da seletividade econômica, étnico-racial e territorial.

O Brasil exibe ao mundo um conjunto de leis avançadas, como a Constituição Federal de 1988, o Estatuto da Criança e do Adolescente, o Estatuto da Cidade etc. que convivem, entretanto, com graves problemas sociais. Por isso, não basta haver uma lei, se ela não suscitar efeitos práticos no cotidiano das pessoas. É uma condição bizarra “ter um direito, mas um direito que não temos o direito de exercer” (William Shakespeare), revelando que lutar pelo direito significa lutar, o tempo todo, pela sua concretização e efetivação no dia-a-dia.

Observando os posicionamentos gerais dos arautos do mercado financeiro na grande mídia (que, aliás, desempenham, em muitos casos, ao mesmo tempo, a função de formuladores, professores, palestrantes, comentaristas, consultores e investidores), é difícil captar onde começa e termina o oportunismo econômico, a subserviência aos patrões e o dogmatismo teórico. Assim, para muitos desses arautos, apologetas da Lava Jato (tal como Ronald Reagan e Margaret Tatcher), a política costuma “atrapalhar” o mercado (concebido como o “reino das virtudes”). Nessa perspectiva, qualquer política de desenvolvimento nacional é tratada como intrinsecamente corrupta. Logo, o monstro a ser combatido é o político, ao passo que o empresário seria o “livre-empreendedor”, acossado pelo “monstro político”. Se o objetivo era enfraquecer o fisiologismo corrupto, a rigor aconteceu o contrário.

Quando o grupo de Temer, Padilha, Cunha etc. acessa o topo do Poder Executivo Federal (e sem as “lenhas jogadas na fogueira” pelo ativismo da Lava-Jato tal acesso seria muito improvável), o fisiologismo político empodera-se consideravelmente, e coloca em funcionamento um programa de devastação inaudita de fundos e ativos públicos, direitos sociais e riquezas naturais. Eis um paradoxo, ainda carente de decifração – pelo menos no tocante ao efeito colateral de empoderamento do fisiologismo, visto que no tocante ao Programa “Ponte para o Futuro” (programa econômico do governo golpista) há uma identificação orgânica por parte das organizações Globo e indícios de identificação dos ativistas da Lava-Jato, provenientes do trato liberal das relações entre mercado, Estado e sociedade civil. “Na opinião de Moro e da Lava Jato a corrupção nas obras públicas decorre de uma economia fechada, preocupada em privilegiar as empresas nacionais. É o que está por trás das constantes tentativas de avançar sobre o BNDES…”7. Logo, vale notar que não são fortuitas situações do tipo Miriam Leitão escrever o prefácio do livro do Dallagnol, bem como as ostensivas participações desses operadores do direito em eventos da elite empresarial brasileira, como os promovidos pela empresa Lide, do empresário e prefeito de São Paulo pelo PSDB João Doria Júnior.

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Um dos pilares do projeto de espoliação imediata de fundos públicos prometidos à elite financeira pelo consórcio golpista é a contrarreforma da Previdência. As pressões e mobilizações surtiram efeito de maneira a suspender, pelo menos temporariamente, a tramitação da matéria no Congresso que, por exigir mudança constitucional, demanda quórum qualificado. Na mesma semana o governo Temer comunica a decisão de uma intervenção no Estado do Rio de Janeiro, nomeando um general para executar tal tarefa. Além de cumprir um papel de caráter tático, conjuntural, essa intervenção apresenta uma dimensão estrutural, estratégica, que deve suscitar muita atenção e preocupação ao campo progressista. De um lado, há indícios que Temer almejou mudar o foco e, com isso, amortecer os efeitos da suspensão (temporária) da tramitação da contrarreforma da Previdência, ao mesmo tempo que, inacreditavelmente, pretendeu recolocar a hipótese de sua reeleição, diante da volatilidade do cenário eleitoral, para completar a tarefa contrarreformista ou, pelo menos, objetivou empoderar o MDB para ter mais voz ativa, ainda, nas definições eleitorais de 2018.

Com tal medida, mais uma vez (porém de modo mais profundo), conclama-se as Forças Armadas para exercerem contenção militarizada de tensões sociais, em um quadro de intensa degradação econômico-político-social. E o Rio de Janeiro sempre servindo como laboratório privilegiado, conforme o próprio General interventor asseverou.8 Desde 1992, acumulam-se 33 situações, com maior ou menor envergadura, de exercício do poder de polícia por parte das Forças Armadas. Militares promovendo giro para dentro de seus respetivos territórios com o intuito de combater “inimigo interno”, exercendo papel de polícia, conflui para uma prescrição geopolítica vinda dos EUA. O México é um exemplo de país onde essa prescrição foi efetuada extensamente, e os resultados são apavorantes.

Além do alargamento da contenção militarizada de tensões sociais, esse processo está servindo para uma ampliação da participação das Forças Armadas na institucionalidade do país. A rigor, segmentos das Forças Armadas, demandando maior protagonismo nos assuntos internos do país, compuseram o consórcio golpista. A reedição de um órgão estatal como o Gabinete de Segurança Institucional, e o direcionamento do mesmo a um general, e não um general qualquer, mas ao General Sérgio Westphalen Etchegoyen, expressam essas movimentações internas da Caserna. Um general voltar a ocupar o Ministério da Defesa também é bem significativo, como aconteceu com a nomeação do General Joaquim Silva e Luna.

A propósito, um cenário marcado pela adesão irrestrita às engrenagens da financeirização econômica, pela resignação à condição de exportador de commodities e pelo correlato abandono de uma plataforma de “desenvolvimento nacional” estimula a proliferação dessas atribuições policial-militarizadas das Forças Armadas. Importante notar que é muito ilustrativa a defesa das privatizações entabulada pelo chefe do Gabinete de Segurança Institucional, General Etchegoyen, incluindo o setor elétrico. Afirmou, textualmente, o General: “as privatizações não ameaçam a soberania nacional”9. É relevante verificarmos, no mesmo compasso, que por trás do biombo da intervenção a pauta da privatização da Eletrobrás volta à tona no Congresso Nacional, e, de roldão, também são jogadas propostas canhestras, de caráter autoritário e conservador, como a do deputado do PP do Rio Grande do Sul que pretende enquadrar como atos de terrorismo as ocupações de terrenos e imóveis ociosos (não cumpridores, por conseguinte, da função social, conforme prescrito na Constituição e Estatuto das Cidades) – tanto nos espaços urbanos quanto rurais.

Circunscrita à tecnologia de governança das medidas de exceção, a intervenção militar reivindica mandados de busca e apreensão coletivos, a exemplo do que ocorreu na ocupação da comunidade da Maré, cuja duração foi de 14 meses (de abril de 2014 a junho de 2015). Tais mandados, é importante frisar, configuram exemplo emblemático do expediente da “legalização da inconstitucionalidade”. Ademais, já promoveu fichamento generalizado de moradores de uma comunidade pauperizada na Zona Oeste – um outro expediente de exceção, não só banalizado, mas aplaudido por parte considerável da população carioca. O decreto de intervenção não cumpriu, ainda, o requisito constitucional do pronunciamento prévio do Conselho da República10e do Conselho de Defesa Nacional11 (arts. 90, I, 91, II). Especialistas ressaltam, também, que o mesmo não preencheu a exigência constitucional, disposta no art. 36, parágrafo primeiro, de especificação da “amplitude, prazo e condições de execução”.

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Enquanto isso, fenômenos variados de deterioração revelam a gravidade da crise social do Rio de Janeiro. A incidência de tuberculose em determinados espaços de pauperismo no estado supera a de países africanos (com alto índice da doença), como Congo e Serra Leoa. Em Manguinhos, por exemplo, tal incidência chega a 337,4 por 100 mil habitantes. No Jacarezinho, a proporção atinge 332,9 casos por 100 mil. Nos supracitados países africanos, a proporção é de 324 e 307, respetivamente, por 100 mil habitantes. A Rocinha também mantém a incidência acima de 300 casos por 100 mil habitantes. Localizada no chique e aparelhado bairro de São Conrado, é um renitente exemplo de um modelo segregador de cidade e da vexatória desigualdade socioeconômica do país12.

A extrema pobreza duplicou em dois anos no Rio de Janeiro, retrocedendo ao nível de duas décadas atrás, e, entre os 20% mais pauperizados, mais de um terço da população economicamente ativa estava desempregada em 2016, segundo aponta pesquisa dos professores Paulo Jannuzzi, Marcelo Vieira e pela consultora Daniela Gomes13. É muito sintomática, ainda, a discrepância entre os direcionamentos de fundo público na favela da Maré (para ficarmos no exemplo dessa imensa comunidade). Em um ano a “ocupação” militar custou 441 milhões de reais, segundo o Ministério da Defesa divulgou. De 2009 a 2015, os gastos com projetos sociais da prefeitura na comunidade foram de 303,6 milhões de reais. Isso em um país no qual 6 pessoas acumulam um montante de riqueza equivalente à metade mais pobre, e o sistema financeiro, não obstante a crise econômica, continua atingindo lucros estratosféricos.

E, assim, enquanto uma elite financeirizada, embebida na atávica cultura escravocrata, clama por mais contenção militar de tensões sociais, setores das Forças Armadas aproveitam para alargar a participação nas instituições estatais e o governo Temer joga a sua hábil e horripilante jogatina política. Essa combinação é muito perigosa, e injeta altas doses de insegurança/instabilidade ao difícil quadro social brasileiro.

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Notas

* O autor agradece a leitura atenta de Renata de Oliveira Cardoso.
1 Eduardo Moretti, “Lava Jato é ainda mais perversa para o emprego do que políticas de Temer”. Rede Brasil Atual, 29 de julho de 2017. Acesso em 25 de fevereiro de 2018.
2 Giorgio Romano Schutte, “A Petrobras e o alto preço da submissão“. 17 de janeiro de 2018. (Acesso em 25 de fevereiro de 2018).
3 Florestan Fernandes Jr., “Ligando os pontos do que parecia ser teoria da conspiração“. Viomundo, 2 de fevereiro de 2018. (Acesso em 26 de fevereiro de 2018).
4 Daniel Giovana, “Um resumo da relação Sergio Moro com os EUA“. Pragmatismo Político, 9 de junho de 2017. (Acesso em 26 de fevereiro de 2018).
5 No contexto da guerra entre Irã e Iraque, o caso refere-se aos desvios subreptícios de recursos obtidos com a venda de armas ao Irã para os chamados “contras”, nos anos 80, que atuavam para derrubar o governo sandinista. Os EUA, oficialmente, apoiavam o Iraque no conflito.
7 Luiz Nassif. “Como a Lava-Jato foi pensada como uma operação de guerra“. GGN, 14 de outubro de 2015. (Acesso em 26 de fevereiro de 2018).
8 Henrique Coelho & Marco Antônio Martins, “Interventor federal diz que ‘Rio é um laboratório para o Brasil’“. G1, 27 de fevereiro de 2018. (Acesso em 26 de fevereiro de 2017).
9 Luiza Calegari, “‘Privatizações não ameaçam soberania nacional’, diz Etchegoyen”, Exame, 12 de setembro de 2017. Disponível em . Acesso em 27 de fevereiro de 2018.
10 Criado pela lei 8.041, de 5 de junho de 1990, esse Conselho é formado pelo Presidente da República; o Vice-Presidente; o Presidente da Câmara dos Deputados; o Presidente do Senado Federal; os líderes da maioria e da minoria na Câmara dos Deputados, designados na forma regimental; os líderes da maioria e da minoria no Senado Federal, designado na forma regimental; o Ministro da Justiça; 6 (seis) cidadãos brasileiros natos, com mais de 35 (trinta e cinco) anos de idade, todos com mandato de 3 (três) anos, vedada a recondução, sendo 2 (dois) nomeados pelo Presidente da República, 2 (dois) eleitos pelo Senado Federal e 2 (dois) eleitos pela Câmara dos Deputados. Compete ao Conselho da República “pronunciar-se sobre intervenção federal, estado de defesa e estado de sítio; as questões relevantes para a estabilidade das instituições democráticas”.
11 Criado pela lei número 8.183, de 11 de abril de 1991, esse Conselho tem como atribuição “opinar nas hipóteses de declaração de guerra e de celebração de paz”; “opinar sobre a decretação do estado de defesa, do estado de sítio e da intervenção federal”; O Conselho de Defesa Nacional é formado pelo Presidente da República, o Vice-Presidente; o Presidente da Câmara dos Deputados; o Presidente do Senado Federal; o Ministro da Justiça; os Comandantes da Marinha, do Exército e da Aeronáutica; o Ministro das Relações Exteriores; os Ministros da Economia, Fazenda e Planejamento.
12 “Tuberculose no Rio: favelas populosas têm piores índices”. Gazeta Online, 15 de outubro de 2017. (Acesso em 27 de fevereiro de 2018).
13 Dados retirados de Rodrigo Martins, “Quem é o real inimigo?”, Carta Capital, 28 de fevereiro de 2018, pp. 26-33.

Fonte: Blog da Boitempo


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