A conjuntura da política ambiental brasileira

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O ano novo chegou carregado do peso que foi 2020, tanto em termos da decadência econômica, do abismo social criado, dos dramas psicológicos e dos seus inúmeros reflexos na vida dos cidadãos brasileiros. A pandemia de COVID 19 originou-se de problemas ambientais crônicos, que a humanidade insiste em repetir há décadas, e para os quais a ciência já vinha alertando há anos. Avançar sobre os sistemas naturais para alimentar um sistema econômico global autofágico, aproximar das populações de animais silvestres que são reservatórios de centenas de cepas viróticas e interferir nos ciclos naturais dos parasitos na natureza foi o disparador da pandemia e causador de uma das maiores mazelas de nossa geração.

Se há alguma possibilidade de enxergar um lado positivo em tamanha tragédia, ela nos instigou a refletir sobre o significado desta crise sanitária global para o nosso futuro enquanto espécie e planeta. No início da pandemia, as imagens de ruas desertas, céu limpo e despoluído e animais selvagens caminhando tranquilamente em áreas onde a espécie humana domina, nos abriram os olhos para a magnitude dos efeitos que estamos causando sobre a Terra. Agora, está evidente que desacelerar o modelo capitalista pode trazer benefícios reais para o ambiente e saúde de todos. Mas, a consciência de coletividade global ficou, em geral, limitada aos lugares onde o desemprego, a fome e a pobreza não bateram à porta, o que ocorreu, especialmente, nos países mais desenvolvidos, que passaram a exigir maior rigor e cuidado ambiental nos sistemas de produção. Parte do mercado entendeu o recado e passou a usar os conceitos já conhecidos de “green new deal” para incorporar à produção meios que garantam o enfrentamento do aquecimento global, pandemias futuras, crise hídrica e outros desastres ambientais. Ao avançar os meses de confinamento, tomada pela exaustão e a pressão da economia “business as usual” que vínhamos realizando, a população foi relaxando nas medidas de proteção, as mortes se multiplicaram e os assuntos ambientais se esvaziaram diante de uma pauta única da produção da vacina, imunizações e necessidade urgente da interrupção desta catástrofe que nos acometeu.

No Brasil, o ano iniciou não apenas com o agravamento da pandemia e seus efeitos, como também com as chagas abertas pela violência ambiental que vem sendo desferida pelo atual governo e revelada na fala do Ministro Ricardo Salles na reunião ministerial de abril de 2020. A boiada vem passando nas reiteradas medidas que estão sendo tomadas pelo executivo, seja o próprio Ministério do Meio Ambiente (MMA), o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA), ou outros órgãos federais. Na sequência do que já havia vinha ocorrendo desde os primeiros dias de governo Bolsonaro, em 2020 se acentuaram as omissões, o afrouxamento da legislação de proteção, além do corte de recursos para ações de proteção da natureza. As posições de liderança dentro do Instituto Chico Mendes e IBAMA, historicamente ocupadas por técnicos de carreira e com formação compatível, foram preenchidas por comissionados alinhados com a política anti-ambiental do Ministro. O Conselho Nacional do Meio Ambiente e outros órgãos colegiados, que devem representar setores da sociedade, incluindo a academia, foram descaracterizados em sua composição. Os institutos de pesquisa federais, incluindo o INPE, além das próprias universidades, sofreram cortes profundos no orçamento, sendo alijados da produção de conhecimento para a tomada de decisão para os quais foram criados, escancarando o negacionismo científico do atual governo. Em paralelo, com menos alardes, o MAPA afrouxou normas de liberação de agrotóxicos ao mesmo tempo em que interferiu nos índices de toxicidade aceitáveis, atendendo à pressão da indústria agroquímica multinacional que prospera em solo brasileiro.

Seguindo o impulso “ecocida” do Palácio do Planalto, a maioria dos governos estaduais aproveitou para avançar seus projetos de “desenvolvimento” atropelando etapas de licenciamento, apresentando projetos sem respaldo técnico ou usando a máquina pública para interferir em instrumentos de proteção já consolidados. Os legislativos, nacional e estaduais, aproveitaram a onda para reapresentar projetos de lei que afrouxam ainda mais a proteção, inclusive com as tentativas de mudanças de categorias e área de unidades de conservação, alterações profundas no licenciamento ambiental, desregulamentações da proteção de espécies ameaçadas, entre muitas outras atrocidades.

Resultado dessas investidas foi o dramático enfraquecimento do sistema de proteção ambiental brasileiro que possibilitou um avanço da perda de vegetação nativa, ameaças à biodiversidade e aprofundamento da crise hídrica que foram notícia no mundo todo. Na Amazônia, as taxas de desmatamento e o número de focos de incêndio aumentaram em relação a 2019, principalmente pelo avanço de grilagem e garimpo sobre as unidades de conservação e terras indígenas. No Pantanal os incêndios ultrapassaram a intensidade e extensão históricas e 30% da área do bioma foi atingida, com grandes perdas para as populações animais. Houve liberação de 500 pesticidas, sendo 30% potencialmente cancerígenos, o que tornam vulneráveis não apenas os sistemas naturais, como também a saúde da população brasileira. Os investimentos em ações para o meio ambiente vêm despencando e, inclusive, em 2021, espera-se que o MMA tenha o menor orçamento dos últimos 20 anos.  Nestes anos, a conta dos retrocessos ambientais só não foi mais alta, devido à presença efetiva de cientistas, ambientalistas e alguns parlamentares que, junto com o Ministério Público, têm alertado a opinião pública sobre os problemas e conseguido barrar algumas dessas investidas.

Neste cenário atual de pandemia e com o legado deixado pelos dois primeiros anos do atual governo, fica evidente que apenas os instrumentos internos de proteção do meio ambiente não estão sendo suficientes para frear o avanço da política anti-ambiental em curso no país. O Brasil foi, durante os anos 2005 e 2016 um dos principais protagonistas de agendas globais voltadas para a mitigação das mudanças climáticas e a conservação da biodiversidade. Esta posição foi alcançada por programas que reduziram as taxas de desmatamento na Amazônia e a liderança e o comprometimento ao assinar o Acordo de Paris. Graças aos resultados da política interna atual, somados à adesão automática do governo brasileiro à política anti-ambiental americana ditada por Donald Trump, hoje o Brasil é um pária mundial, explicitado em vários segmentos da opinião pública internacional.

Nestes primeiros dias de 2021 há um aceno de que a atmosfera política ambiental mundial irá mudar e uma expectativa de que traga algum reflexo positivo sobre a derrocada ambiental brasileira dos últimos dois anos. Entre as primeiras medidas tomadas por Joe Biden ao assumir a presidência dos Estados Unidos, está o retorno do país ao Acordo de Paris, o que tem movimentado os bastidores da Conferência das Partes (COP) sobre Mudanças Climáticas que deverá ocorrerá na Escócia este ano. O democrata também tem sinalizado que apertará o cerco à importação de produtos gerados sem base sustentável. Somado a isso, o mercado europeu, que já vinha criticando o governo brasileiro nos últimos dois anos, inclusive com grandes restrições à presença do país no Tratado de Livre Comércio UE-Mercosul, com a pandemia mergulhou de vez na ESG (conceito que incorpora melhores práticas ambientais, sociais e de governança). Assim, se não quiser agravar ainda mais a crise econômica e tiver um mínimo bom senso, o Brasil deverá incorporar práticas mais sustentáveis para agradar um mercado internacional que está se fechando. Se esta não é a solução ideal para reverter as recentes perdas do patrimônio natural dos brasileiros, é, pelo menos, uma pequena fagulha de esperança para novos ares na política ambiental do Brasil.

Marcia C. M. Marques – PPG Ecologia e Conservação


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