Crítica da reforma trabalhista

cipolla“A gente tem que sair do sertão! Mas só se sai do sertão é tomando conta dele a dentro” Zé Bebelo, Grande Sertão Veredas.

 

Em 2004 o Banco Mundial iniciou um projeto chamado Doing Business Indicators do qual faz parte o Employing Workers Index, um conjunto de indicadores que medem o grau de flexibilidade na contratação, demissão e jornada de trabalho.

A motivação era organizar uma hierarquização dos países com base no grau de atratividade para realização de negócios. Evidentemente, o Employing Workers Index (EWI) serviu de base para uma enxurrada de pesquisas, todas mostrando que quanto mais rígido era o mercado de trabalho menor era o nível de emprego. Os resultados serviam bem para estimular os países a realizar reformas trabalhistas. Além do mais, o ranking dos países de acordo com seu grau de rigidez no mercado de trabalho, permitiria avaliar o progresso de cada um deles no sentido da liberalização e flexibilização das relações de trabalho, servindo assim de base para a negociação de condicionalidades na concessão de auxílios financeiros.

Mais recentemente surgiu um movimento de crítica cujo epicentro foi a OIT, a Organização Internacional do Trabalho, dado que países como a Geórgia, por exemplo, tomado como modelo de regulação, dava poder ilimitado aos patrões para demitir os empregados e impedir a organização coletiva dos trabalhadores.

Como dito acima, os indicadores mais relevantes do EWI são: a facilidade de admissão (hiring), facilidade de demissão (firing) e a rigidez das horas de trabalho. Todos esses itens, como não poderia deixar de ser, estão belamente contemplados na reforma trabalhista proposta pelo atual governo.

A partir dos anos 80 do século passado, as reformas trabalhistas de iniciativa dos governos tem tido sempre o objetivo de aumentar a concorrência entre os trabalhadores, diminuir os salários, aumentar a jornada de trabalho, flexibilizar as formas de contrato, e por aí vai. Afinal, se o mercado otimiza o bem estar é porque a concorrência leva a esse resultado. A maior concorrência entre os trabalhadores diminui os salários, mas aumenta o emprego. Um salário dividido entre dois empregados gera mais utilidade do que um salário inteiro para apenas um. Assim diz a teoria econômica dominante que é a base sobre a qual se apóia a iniciativa do Banco Mundial.

A reforma proposta pelo governo segue o estouro da boiada: abre as portas para o aumento da jornada, alinhando-se com a reversão mundial da tendência que se apresentava, desde 1870 até o final do século passado de redução da jornada de trabalho. A erosão progressiva desse largo passo histórico se vê por toda parte. Na França, por exemplo, o país com a menor jornada semanal do mundo, candidatos saídos do campo socialista, como Emmanuel Macron, novo espadachim do centro, já falam em propostas de flexibilização da jornada para aqueles que quisessem aceitar jornadas mais longas. Os jovens por exemplo. Macron é insidioso. Sabe que os jovens desempregados aceitariam qualquer coisa para sair do marasmo do desemprego.

Jornada de trabalho

Pois bem, o projeto de lei apresentado pelo governo mergulha de cabeça nessa reação pelo prolongamento da jornada de trabalho propondo possíveis jornadas de até 12 horas com um total máximo mensal de 220 horas, conforme a negociação entre trabalhadores e patrões, e com “força de lei” de acordo com o Artigo 611-A. Ora, 220 horas mensais correspondem a 10 horas de trabalho se calculadas sobre um mês de 22 dias úteis.

Ademais, o tempo de interrupção, sempre que cumprido um máximo de trinta minutos, pode ser livremente negociado entre as partes, também com força de lei. É claro que esse limite mínimo será rapidamente imposto como regra se a lei for aprovada. A diminuição dos tempos de intervalo dentro da jornada é também uma forma de aumento da jornada efetiva de trabalho, fato que beneficia o empregador em detrimento do empregado.

Contrato de trabalho temporário

O projeto de lei propõe também o aumento do prazo de contato temporário para 120 dias com possibilidade de prorrogação pelo mesmo período, o que nos leva a um total de 220 dias, ou 60% da jornada anual, circa.  As vantagens do trabalho temporário são conhecidas. O empregador contrata sob-medida, de acordo com as necessidades do momento. Sem direito à estabilidade no emprego quando afastado por motivo de doença ou acidente, sem multa rescisória e nem os 40% sobre o FGTS no momento do desligamento do empregado. É uma mamata.

Há ainda a possibilidade de conversão de 1/3 de férias em abono pecuniário sendo que o número de dias de férias a que tem direito o trabalhador temporário vai diminuindo progressivamente na proporção do número de faltas que ele vai acumulando, chegando até 12 dias de férias quando houver tido de 24 a 32 faltas.

O trabalho temporário abre as porta para o embalo da terceirização, a forma mais próxima do trabalho escravo que o capitalismo descobriu. No Brasil os senhores de escravos misturavam etnias africanas que mal podiam se comunicar entre si – e que muitas vezes eram de tribos rivais – para melhor subjugá-las. Agora se misturam trabalhadores contratados com trabalhadores terceirizados. Se o sindicato representava a tentativa de vender a força de trabalho em grupo como forma de auto defesa, agora a empresa de alocação é o intermediário entre a força de trabalho e aqueles que usufruem dela, tudo misturado com outros funcionários que se reportam aos empregadores do local de trabalho. Veja o que diz o juiz do trabalho Renato Henry Sant`Anna :

«a contratação de funcionário por meio de serviços terceirizados é uma forma de enfraquecer o movimento sindical, considerando que os empregados estão vinculados legalmente, a diferentes patrões, o que acaba dificultando a unidade dos trabalhadores e, consequentemente, a obtenção de vantagens que o movimento organizado poderia oferecer. Para o magistrado, essa certa obstrução da liberdade sindical – isto é, uma prática antissindical -, contraria a própria premissa do movimento, que é a melhoria da condição social do trabalhador .»

(http://www.ebc.com.br/noticias/brasil/2013/05/terceirizacao-enfraquece-movimento-sindical-avalia-juiz-do-trabalho).

Trabalho em regime de tempo parcial

No que tange à jornada parcial o projeto aumenta o máximo de horas semanais de 25 para 30 horas o que numa semana de 5 dias representa uma jornada de 6 horas. Além disso, propõe a possibilidade de um acréscimo de 6 horas suplementares se o contrato firmado prever uma jornada semanal de 26 horas, acréscimo que nos levaria a 32 horas semanais de trabalho parcial.

O gráfico abaixo mostra a extensão do trabalho parcial como forma de ocupação nos países da Europa.

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Fonte: European Commission, Part-time work: A divided Europe.

http://ec.europa.eu/social/main.jsp?langId=en&catId=1196&newsId=2535&furtherNews=yes.  Acesso em 30 de dezembro de 2016

No eixo horizontal temos os países. Por exemplo, o primeiro pais é a Bulgária e o último a Holanda (Netherlands). As colunas azuis escuras representam as mulheres empregadas em tempo parcial como porcentagem do emprego total das mulheres; as colunas em azul claro fazem o mesmo para os homens. Para citar um exemplo, na França, FR no gráfico, 30% do emprego das mulheres é em regime de tempo parcial. Como se pode ver ao comparar as colunas azuis escuras com as azuis claras, a porcentagem das mulheres em regime de trabalho parcial é muito maior do que a dos homens. As economias do mundo todo exploram o trabalho da mulher – normalmente mais barato – na forma que custa menos, o trabalho em tempo parcial. Dupla subtração!

O gráfico abaixo mostra que a proporção dos ocupados em tempo parcial que estão nessa situação involuntariamente, isto é, não por opção própria, mas por necessidade, é bastante grande. Ambos os sexos apresentam altas taxas de ocupação parcial involuntária, sendo que entre os homens essa proporção é maior.  Isso significa que o trabalho em tempo parcial transformou-se em componente fisiológico do capitalismo. E cancro cresce.

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Fonte: European Commission, Part-time work: A divided Europe.

http://ec.europa.eu/social/main.jsp?langId=en&catId=1196&newsId=2535&furtherNews=yes.  Acesso em 30 de dezembro de 2016

Um aspecto importante do trabalho temporário é que enquanto os empregadores obtêm aquilo que desejam, que é o excedente ou lucro, os trabalhadores não logram obter aquilo que necessitam, o necessário para a sua normal sobrevivência. Na análise do salário por tempo Marx observou que o sistema capitalista é o único na história da humanidade no qual a forma que assume o tempo de trabalho necessário, isto é, o salário/hora, permite uma ruptura entre trabalho necessário e trabalho excedente. O empregador admite o trabalhador pelo número de horas que maximiza o seu custo-benefício, mas esse número de horas não permite ao trabalhador obter um salário equivalente ao valor de sua força de trabalho, isto é, suficiente para a sua normal reprodução enquanto força de trabalho.

Quais as vantagens do trabalho parcial para o empregador? Várias. Entre elas esta: trabalho realizado por pesquisadores do Bureau of Labor Statistics dos EUA mostrou que 93,8 % dos trabalhadores ocupados part-time têm um salário/hora menor do que os trabalhadores full-time nas mesmas ocupações (Pongrace e Zilberman, 2007).

É…, parafraseando um personagem de Corpo de Baile, se o mundo acabasse amanhã realmente ficaria muita coisa pra arrumar.

Referências

David M. Pongrace and Alan P. Zilberman A Comparison of Hourly Wage Rates for Full- and Part-Time Workers by Occupation, 2007, Bureau of Labor Statistics.

Por Francisco Paulo Cipolla, docente do Departamento de Economia da UFPR


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